terça-feira, 19 de junho de 2007

Nome de família: a América indiana de Jumpa Lahiri e Mira Nair



Stefania Chiarelli


Pés escolhem caminhos, atravessam fronteiras, se vestem, se despem, esfriam, esquentam, se enfeitam, se machucam. Tantas emoções e quase sempre ficam lá, escondidos em um sapato ou sandália qualquer. Mas em Nome de Família (The Namesake, Índia/Estados Unidos, 2006) a diretora Mira Nair acertou ao mirar sua lente para esses personagens pouco comuns. O filme conta a história do estudante Ashoke Ganguli (Irrfan Khan), que sobrevive a um acidente de trem na Índia e vincula o quase-milagre ao exemplar de O Capote, de Nikolai Gogol, que tinha em mãos no momento do descarrilamento. Além de redobrar seu afeto pelo escritor, o episódio o inspira a conhecer outras terras. Em Calcutá, Ashoke escolhe uma noiva, Ashima (Tabu), e se estabelece como pesquisador nos Estados Unidos. Quando seu primogênito nasce, o casal dá a ele o nome de Gogol. A intenção é que esse seja apenas o nome pelo qual será tratado em família. O "nome bom", o oficial, deverá ser escolhido pela avó, em uma carta que não chega nunca, e Gogol permanece Gogol. O tempo passa, e o jovem acaba se envolvendo com a norte-americana Max (Jacinda Barrett). O romance constrange e assusta seus pais. O próprio rapaz se convence das dificuldades de manter um namoro multicultural e acaba se apaixonando, mais tarde, por uma moça de ascendência indiana, o que termina por revelar que a origem comum não é garantia de um relacionamento feliz.


Para contar a história desses personagens, os pés surgem nus, levando a poeira da rua, em toda a sua naturalidade, despojados de artifício, como nas cenas de Ashima e suas unhas quebradas, dedinho torto, delicada tornozeleira. É através deles que se dá o primeiro contato da personagem com Ashoke: ao experimentar os sapatos americanos do futuro marido, em ato que mistura transgressão e curiosidade, os pés da garota indiana se sentem confortáveis e seguros. Mais adiante, o enquadramento revela a beleza da pintura dos pés para o ritual de casamento, adorno que permanecerá por vários dias. Na cena em que, no inverno americano, reaparecem descalços, como na Índia, revelam o desamparo da personagem ao perder o companheiro de toda vida. Da mesma forma, para Gogol, é ao se deparar com os sapatos do pai no quarto impessoal da universidade em que fora lecionar que irrompe a emoção. O toque dos pés descalços nos sapatos do pai morto agudiza a dor e a culpa. Nos pés e na perna manca o pai trazia as cicatrizes do acidente que definiria os rumos familiares. Paul Valéry afirmou que não há nada mais profundo do que a pele, e essa sensibilidade corporal ocupa papel central no belo filme de Mira Nair.

Nome de família foi adaptado do romance O xará (2004), de Jumpa Lahiri. Nascida em 1967, a autora recebeu o Prêmio Pulitzer em 2000 por Intérprete de males, livro de nove contos em que o confronto entre culturas já aparecia. “Esta casa” e “Intérprete de males” são narrativas em que o conflito surge com consequência desse embate. Jumpa Lahiri explora essa condição multicultural para construir personagens delicados e, sobretudo, humanos. A opção de focar esse espaço doméstico, dos pequenos dramas e acontecimentos da vida do imigrante ou de seus descendentes, revela sutilezas que enriquecem a narrativa, já que tanto a escritora quanto a diretora tem familiaridade com o tema. O ambiente acadêmico revela essa faceta da presença indiana no espaço universitário norte-americano. Os personagens são estudantes, bolsistas, professores, pesquisadores. O xará retoma essa ambientação, demontrando que não se trata de indivíduos marginalizados que ocupam as posições menos privilegiadas da sociedade americana, mas de pessoas cuja formação intelectual permite certa integração à nova realidade cultural.

Assim como Gogol, Jumpa Lahiri descende de pais indianos. Nascida na Inglaterra e criada nos Estados Unidos, a autora discute a condição de se estar entre diferentes culturas sem pertencer inteiramente a nenhuma delas. São móveis as identidades, e essa errância se traduz muito bem na discussão sobre o nome do protagonista da história, que nasce Gogol, vira Nikhil, depois retoma o nome inicial. No centro de tudo, a busca de um nome que dê conta dessa vivência dupla, de pais profundamente marcados pela tradição cultural indiana de um lado, e de outro, de um filho nascido e criado dentro dos valores da sociedade americana. A morte do pai faz irromper em Gogol o desejo de rever esse passado, de mergulhar nas raízes esquecidas para entender um pouco melhor a própria história. Apesar de não ser o imigrante exilado que chora a perda da terra natal, na América é sempre rotulado como “um indiano”. Perfazendo um movimento circular, o filme de Mira Nair se encerra em outra viagem de trem. Agora é o filho quem inicia a jornada, e desta vez, a escolha recai sobre a deriva, a atração pelo mundo em todas as suas possibilidades. Da integração provisória das metades partidas, Ocidente e Oriente, pode surgir o novo Gogol.

2 comentários:

Tania Nunes disse...

Stefania e Giovanna,
A boa crítia é aquela que nos incita a ver o filme ou ler o livro, deixando ao fim de sua leitura aquele sabor delicioso de que por trás da análise outros olhares poderão ser acrescentados. Parabéns pelo blog. Uma feliz iniciativa.

Raphael disse...

*-*