domingo, 24 de junho de 2007

A morte do leitor - 1

Giovanna Dealtry

Inúmeros escritores de diferentes nações e épocas, como Machado, Borges ou Calvino, reservaram um espaço significativo para o leitor em suas obras. Seja como personagem – como em “Se um viajante em uma noite de inverno”, de Calvino – ou como alvo dos piparotes machadianos. Em um sentido mais amplo, o leitor, real ou ficcional, revela os cruzamentos entre o fazer literário e a própria leitura. O isolamento, a paixão silenciosa, a concentração são temas caros tanto ao escritor quanto ao leitor. Cortazar no seu célebre conto “Continuidade dos parques” borra justamente essas pretensas e seguras fronteiras entre leitor e literatura.

“Recostado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse , de quando em quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos.”

Aí está o leitor pego em flagrante em sua intimidade erótica com o próprio livro. O final, todos sabem: enquanto o personagem leitor encaminha-se para o desfecho do enredo, nós – e ele também? – descobrimos aterrorizados que a literatura invade o espaço pretensamente seguro do ato de ler. De costas para a porta que tanto o incomoda o leitor lê sua própria morte se aproximando. Ler não tem nada de reconfortante e seguro, e muito menos nos leva a um mundo em separado do real, ainda que todo o leitor anseie por estar do lado de lá dessa continuidade dos parques. A literatura que realmente vale a pena é sempre uma traição para com o leitor. Não é à toa que em “A morte e a bússola”, de Borges, o detetive, exímio leitor, termina caindo na armadilha que o leva à própria morte. Ler deixa de ser uma mera atividade de distração, de transposição para um outro universo e torna-se um ato de questionamento do próprio leitor, um jogo – por isso o erotismo – de sedução e perseguição entre o escritor e o leitor, agora não mais parceiros, mas desafiantes.


2 comentários:

Anônimo disse...

Giovanna,
muito boa a lembrança de "A morte e a bússola" e a analogia feita a partir do detetive com o leitor. O detetive, até então leitor da lógica racional, tem a segurança abalada pelo seu duplo. Me intriga muito essa questão do leitor ativo, principalmente quando não se sabe quem é ele. Devaneios... hehehe... Adorei seu blog! Beijos!

Anônimo disse...

Giovanna,
Ricardo Piglia chamou "A morte e a bússola" de "Ulisses da narrativa policial": o modelo vira pura forma e se desintegra.
A comparação é arriscada e, claro, um tanto exagerada. Mas interessante. E seu princípio coincide com o que você diz: é na hora que o leitor é concernido pelo texto e a decifração se torna exercício de leitura que o texto se realiza e torna possível levar ao máximo a proposta narrativa.
Abraços!