sábado, 5 de abril de 2008

Resenha de Tânia Pellegrini sobre o livro Alguma prosa

O texto abaixo foi publicado no caderno Idéias (Jornal do Brasil) e comenta o livro que organizamos.

Prosa brasileira: um difícil enigma
Tânia Pellegrini*
A prosa brasileira contemporânea parece ter se tornado uma espécie de esfinge difícil de decifrar, na sua aparente facilidade. As reações diversas da crítica, que vão da rejeição completa ao aplauso apressado e barulhento, passando pela natural perplexidade de confrontar o que se apresenta como novo, só fazem confirmar esse lugar-comum.
Na verdade, o enigma posto por essa esfinge traduz a multiplicidade de aspectos que dão a configuração geral da ficção de hoje, ocultos, na maioria das vezes, sob a rubrica geral do entretenimento, em que uma linguagem ágil e fácil, de cunho jornalístico, traduz detalhes da realidade urbana de todos os dias ou elucubrações individualistas de um sujeito qualquer.
Surgida do caldo cultural do regime militar, que à censura acrescentava outros ingredientes – como o estímulo à modernização e à industrialização – a ficção de hoje, para quem se arrisca a enfrentar o enigma, introduz temas e soluções referentes a um outro Brasil, não mais aquele cantado em prosa e verso pelas vozes de inspiração apenas modernista, que propunham uma literatura nova para os novos tempos do alvorecer industrial.
Tanto a cultura quanto a literatura de hoje traduzem um país melhor ou pior – dependendo do ângulo pelo qual se olhe – mas certamente bastante diverso, a partir do qual se vieram gestando outras sensibilidades, com outros olhares sobre o mundo e outras formas de representá-lo. Para alguns, já um mundo pós-moderno, com todas as incertezas e divergências que esse termo pode suscitar. E para o qual entretenimento e mercado passaram a ser palavras de ordem.
O livro Alguma prosa: ensaios sobre a literatura brasileira contemporânea – meticulosamente organizado por Giovanna Dealtry, Masé Lemos e Stefania Chiarelli – é uma honesta tentativa de decifrar o tal enigma, sem se deixar seduzir completamente pelo entretenimento e pelo mercado, numa postura comprometida com a seriedade de sua tarefa.
Reúne 16 ensaios sobre ficção, claramente escolhidos com o objetivo de olhar pelo menos alguns dos vários aspectos da complexa pluralidade de questões postas pela nova literatura. Os ensaístas, cuidadosos, procuram não se deixar levar pela reverência a cânones estabelecidos pela linha teórica escolhida – a mesma, com variações, para todos - pelo renome de autores já consagrados por esses mesmos cânones ou até pela mídia. Estes também estão presentes, mas sempre submetidos ao crivo de uma análise sistemática.
A linha teórica que ampara os textos vê a literatura como mediação, um modo de ver o mundo e nele estar, sendo que todo crítico literário, ao se debruçar sobre seus objetos, "narra também experiências e percursos próprios", como afirma uma das organizadoras.
É isso que, provavelmente, orienta a escolha dos autores analisados, na maioria produzindo a partir da década de 90, tal como os próprios ensaístas reunidos no livro. Embora o conjunto adquira um toque de geração, não se trata de trabalho de crítica ligeira; os ensaios, embora diversos na fatura e na profundidade argumentativa, bem como sua organização, provêm da universidade, lugar que ainda exige questionamento e reflexão, mesmo nestes tempos de pressa e dúvida. Assim, percebem-se juízos de valor estabelecidos, o que de sobra legitima o trabalho, principalmente porque se abrem à discussão.
Afastando-se o puro entretenimento, colocam-se questões caras à prosa, como a relação entre ficção e realidade, o lugar do sujeito, o compromisso do autor ou o papel do narrador, que adquirem tonalidades novas, "pós-modernas" se quisermos, na medida em que se mesclam a outras, já expressão de experiências radicais dadas pelo momento presente.
Desterritorialização, condições de exclusão, medo e solidão, problemas de identidade relacionados ao corpo e à vivência da sexualidade, situações-limites dadas pela violência urbana cruzam-se nas análises, que vão fundo nos textos dos escritores escolhidos.
Experiências como a de Budapeste, de Chico Buarque, ou dos contos de João Gilberto Noll, que refletem sobre o papel do autor nas sociedades contemporâneas.
Ou ainda a necessidade de criar "fluxos constantes" para romper o isolamento do sujeito, como tenta Amílcar Bettega; a ânsia do encontro consigo mesmo, no amor de uma mulher por outra, em Cíntia Moscovitch; a condição do negro, historicamente construída e vivenciada como memória de um "eu rasurado", em Conceição Evaristo ou em Ana Maria Gonçalves e seu "defeito de cor"; a inconcebível banalidade da violência em Patrícia Melo e Rubens Figueiredo; e o papel de livros e leituras na "biblioteca de Hatoum".
E é importante acrescentar que, embora a seleção recaia mais sobre autores do Rio, percebe-se o cuidado de percorrer todo o país, , incluindo outras regiões.
Como se os ensaístas percebessem que, gestados sobretudo nas tensões dos grandes centros urbanos, mesmo expressando às vezes diferenças regionais nos espaços e tempos, esses autores tivessem a uni-los as mesmas angústias e medos, não só existenciais, mas também relativos aos limites da literatura enquanto possibilidade de traduzir uma realidade desde há muito quase inenarrável.
O que se pode transferir para os próprios ensaios: viceja em todos eles, em texto e subtexto, a consciência inquieta da impossibilidade de a crítica literária conseguir penetrar no âmago da literatura.
E talvez seja essa mesma consciência que faz de cada ensaio uma peça exploratória de agradável leitura, sem juízos finais, mas com a humildade de quem aceita e respeita a dificuldade do enigma, para não ser devorado sem sequer ter podido enfrentá-lo.
* Professora de literatura brasileira e sociologia da cultura da Universidade Federal de São Carlos (SP)