quarta-feira, 19 de março de 2008

De naufrágios e sobreviventes

Stefania Chiarelli
O mito é o nada que é tudo, afirmou Fernando Pessoa. Dessa força constante de recriação, da trama de fabulações mitológicas de origem indo-européia e ameríndia nasce o último livro de Milton Hatoum. Não é exagero afirmar que o escritor amazonense é adorado pelos leitores e reconhecido pelos críticos. Uns e outros tem motivos para celebrar Órfãos do Eldorado: lá estão, como em seus outros escritos, o viés memorialístico, os dramas familiares, a cidade como cenário e cúmplice de fatos marcantes, as águas amazônicas em sua potente expressão.
O móvel da história não se detém, entretanto, no aspecto mítico da trama. Ele é pretexto para nomear a situação de uma sociedade marcada pela prática do favor, do clientelismo, da propina, características presentes na conduta do pai do narrador, Amando Cordovil, proprietário de uma empresa de navegação. A ética da acumulação não seduz Arminto, seu herdeiro. A partir dessa e de outras divergências se inicia a bancarrota familiar, tema comum aos outros romances de Hatoum.
A Amazônia costuma simbolizar fausto e riqueza, mas nesta narrativa ela surge como palco de violência, de negociatas, ambiente de crianças roubadas e abusadas. Como Florita, a indígena de quem o órfão Arminto bebe o primeiro leite e as palavras traduzidas da língua geral. É dela a tarefa de criar a ponte entre mundos, de recriar esse outro universo aos olhos do menino curioso. A primeira cena do livro já desmistifica a figura muitas vezes idealizada do índio: Florita vê uma mulher se suicidando no rio e deturpa o sentido de suas últimas palavras. Para que o garoto não se impressione, conta a ele que a moça fora atraída por um ser encantado no fundo das águas. Traduzir é também trair, modo de lidar com uma história de domínio e imposição cultural. Anos depois, Arminto compreende o significado das palavras trocadas, e essa noção de engodo perpassa toda a narrativa.
Das palavras em língua estranha de uns aos silêncio absoluto de outros também se faz a novela. Dinaura, a mulher amada por Arminto, esconde um segredo. Após uma única noite de amor, desaparece, e ele passa a buscar seu paradeiro, terminando de arruinar o patrimônio dos antepassados. A pesada atmosfera familiar de culpa e morte, de ausência paterna e dissipação do legado material e afetivo abre espaço para a dúvida que permanece quando finda a leitura. Hatoum não reserva ao final, como em seus dois últimos livros, revelação que arremata o desenlace. Elementos da trama permanecem na obscuridade. Com isso ganha o leitor, chamado a tomar parte ativa na história, a imaginar. Certo é que Dinaura se inscreve em uma linhagem de personagens femininos da literatura brasileira: a dança em clima de possessão e erotismo homenageia Ana, de Lavoura arcaica, outra figura marcada pelo drama do incesto e da lei paterna. Dona de olhos oblíquos, em seu silêncio eloqüente lembra também Capitu, personagem machadiana.
Eis uma das delicadezas da construção de Hatoum: a literatura se beneficia desse diálogo entre textos e encontra lugar especial entre seus personagens. A palavra poética como conhecimento de si e dos outros, como mediação entre as experiências e as pessoas, aparece nos poemas citados, nos personagens-leitores, na homenagem a Bandeira, Raduan Nassar e Machado, para ficar em alguns nomes.
De tom melancólico, falando de perda, luto e ruínas, Hatoum revisita o mito da Cidade Encantada para contar uma história de amor, e também para transmitir relatos que circulam oralmente entre os indíviduos. Navios, fortunas e paixões naufragam, mas sobrevivem as histórias e o desejo de contá-las.

(Resenha originalmente publicada no Suplemento Pensar do Correio Braziliense)