sábado, 5 de janeiro de 2008

Amores expressos ou como viajar sem sair do lugar.

Giovanna Dealtry


O projeto "Amores Expressos", patrocinado pela Companhia das Letras e tendo como um dos coordenadores o escritor João Paulo Cuenca, já rendeu uma série extensiva de polêmicas em blogs e cadernos culturais. Falou-se em dinheiro público sendo utilizado para alimentar panelinhas de amigos, em falta de critério para a escolha dos autores que passariam um mês viajando para diversas cidades do globo e teriam que trazer na bagagem um romance sobre o amor na contemporaneidade. Este post não pretende retomar essa discussão pra lá de complexa e que acaba por gerar mais "mídia espontânea" do que realmente uma discussão sobre os rumos da literatura no Brasil e o papel do mercado nessa relação. Eu,pessoalmente, acho que escritor tem que pagar aluguel, escola do filho, como qualquer outro, e, portanto, como qualquer outro artista, deve ter direito de acesso a verbas públicas com projetos que contribuam para a cultura brasileira. Isto posto, vamos ao que interessa. Desqualificar, destruir, humilhar publicamente uma outra cultura e os indivíduos de uma outra nação pode significar tudo, menos o comprometimento ético sobre o qual se deveria fundar a literatura contemporânea convivendo obrigatoriamente com a alteridade. Torna-se incompreensível como uma jovem autora, nem mais tão jovem ou inocente assim, possa escrever em seu blog dedicado ao cotidiano de sua viagem à India tais palavras "Embora eu seja uma moça pop que gosta de gostar das coisas, não há nada que me faça gostar dos indianos. Ter voltado pra Mumbai deixou isso muito claro e, se antes esse era um ponto de conflito para mim, agora não mais. Eu aprendi a aceitar a Índia, mas definitivamente não gosto dela. A lista de razões é enorme e eu estou cansada de sentir raiva daqui, então apenas enuncio o que não tolero: o modo como os homens me olham nas ruas, o fato de estarmos sempre sendo roubados pelos indianos e a noção de higiene deles – que é sem noção. Claro que há indianos interessantes, sobretudo entre os círculos intelectuais, como o Shoban, dulcíssima figura, marido da Florência Costa – meu casal anjo da guarda, responsáveis pela minha viagem ao mosteiro – ou nas classes mais altas, como a Shivani e a Payal. Na melhor das hipóteses, a banda boa corresponde a 10% da população - que não pode nada contra os mais de 1 bilhão da banda pobre."
A jovem escritora pop, ao que me conste, ainda não publicou nenhum romance ou livro de contos próprio. O que me faz pensar que a escolha da jovem escritora pop justifique-se pelo novo olhar que traria a antigas questões. Pelo menos é isso que aparece escrito no site oficial do projeto amores expressos: " Em seu mergulho no estrangeiro, os autores só terão a preocupação de produzir literatura, procurando ouvir e reproduzir a voz do outro que se encontra em cada um, suas alteridades particulares que o isolamento da jornada fará aflorar." Acho que a jovem escritora pop não leu a proposta do projeto, porque mesmo indo tão longe, a esse "país filho da puta", esse país "assustador" (e não no bom sentido) parece que a jovem escritora pop não saiu do lugar. Não saiu do seu bairro, da sua língua, não abriu-se ao outro, foi incapaz de permitir-se deslocar, de realmente exercitar o que é mais difícil na boa literatura: enxergar o mundo pelos olhos do outro. Uma pena que a jovem escritora pop não tenha saído do seu umbigo nessa viagem e reproduza o mesmísssimo discurso colonialista empregado há séculos pelos viajantes europeus que só conseguiam observar a falta e desejavam reduzir o outro ao mesmo. Em apenas um mês de viagem, a escritora pop conseguiu afirmar de maneira inequívoca que "até os monges tibetanos, uns santinhos, não gostam muito da Índia ou dos indianos."
É claro que todos nós encontramos escritores, cineastas, políticos etc que pensam assim. Faz parte da vida. O que não deveria fazer parte dos movimentos brasileiros de literatura nos nossos dias é esse espaço garantido no mercado e na mídia a certos autores que acreditam que literatura se faça com posições politicamente incorretas que eles justificam como sendo transgressoras. Abrem mão, em um discurso lido na orelha beatink-pop-lapa, do maior legado da literatura universal. O defrontar-se com o outro e deixar explodir, nesse encontro, a própria fragilidade.
Alguém aí do outro lado da telinha poderia dizer: mas isso é dinheiro particular, da editora. Se não é dinheiro público cada um convida - e paga - o autor que acha mais interessante e depois quem quiser que leia. Sim, é dinheiro vindo da iniciativa privada (pelo menos que eu saiba), mas que com o aval de uma das maiores editoras do Brasil torna-se um bem público, uma narrativa bem editada, fotografada, blogada que repercurte, que arrasta atrás de si espaços nos parcos cadernos de cultura, além de uma mídia que se alimenta mais das polêmicas do que das teorias sobre a literatura ou o amor contemporâneo. Uma pena realmente, um desperdício que, pelo menos essa viagem, não tenha se realizado.