segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Montanha mágica no verão carioca

Giovanna Dealtry


Em tempos pós-coloniais, pós-modernos, pós-tudo, o termo “clássico” transformou-se em um belo problema. De um lado, o texto clássico remete, quase que exclusivamente, à cultura ocidental. Corrigindo: quase que exclusivamente à história européia e aqueles que, diante do reconhecimento de críticos eurocêntricos como Harold Bloom, beberam da mesma fonte, como Borges ou Machado. Desse ponto de vista, os textos clássicos podem ser assim nomeados não por instaurarem a diferença, mas por mesmo apresentando novas estruturas narrativas não perderem de vista as origens da literatura. Para esse tipo de crítico, o mais interessante é perceber como as periferias do mundo aprenderam direitinho a lição. Esquecem-se, ou não conseguem nem perceber, a subversão que esses escritores operam ao corroer lentamente as estruturas do modelo, em especial, do romance moderno.
Essas idéias soltas e comprovadamente sem embasamento nenhum me vieram agora, quando me prôpus a escrever sobre A montanha mágica, de Thomas Mann. Estou no meio da montanha, lá pela página 480, e ao mesmo tempo em que sigo as desventuras do herói Hans Castorp, exilado em uma estação de cura para tuberculosos, pergunto-me o que tenho eu a ver com isso. Sinto-me tão isolada e esquisita quanto o pobre Hans Castorp que planeja uma visita de três semanas ao primo há meses em tratamento em Davos, na Suiça, e logo descobre ser ele também portador de “um lugar úmido” no pulmão. Segundo os médicos necessita urgentemente entrar em tratamento, o que significa medir a temperatura umas cem vezes por dia, comer enlouquecidamente, repousar e expôr-se ao ar frio das montanhas. E mais nada. Nada. São dias brancos os de Castorp e Mann é de um detalhismo ao acompanhar o pensamento do jovem alemão no correr dos meses e anos que a sensação que temos é o que o tempo realmente parou, cessou de existir naquele pedaço do mundo. Dias e pensamentos unem-se numa única massa esmaecida em que fatos corriqueiros adquirem contornos dramáticos, como o estrondo da porta ao bater ou o gosto terrível do charuto. E, ao contrário do que se espera, os dias para esses internos, alguns condenados, passam rápido, como afirma um personagem, a menor unidade de tempo naquele lugar é um mês. É essa, com certeza, a grande discussão proposta por Mann. Interessa investigar como o homem burguês, o paisano, é profundamente afetado pelas concepções físicas, sociais e psicológicas do tempo. E, mais especificamente, como a entrada na modernidade, marcada pela fixação em definitivo do modo de vida burguês, transforma toda a nossa visão entre o ser e o tempo. Essa discussão é travada toda vez que surge em cena o italiano Setembrini, humanista como ele próprio se nomeia, a chamar a atenção de Castorp para o estado de letargia que invade a todos os pensionistas que já não se importam mais em contar meses ou anos, desde que estejam presos à sua rotina proporcionada paradoxalmente pela doença. A doença paralisa o corpo, mas também a alma, e torna-se um excelente álibi para abandonarmos o mundo. O que isso tem a ver com o primeiro parágrafo desse texto eu conto depois.